A vida de Santos-Dumont foi, toda ela, dedicada à conquista do ar.
Pode-se mesmo dizer que, na infância, quando residia no interior
brasileiro, a sua imaginação era despertada pela ascensão
dos pequenos balões de papel que os meninos soltavam nas noites
de São João, na alegria de uma das festas mais populares
do Brasil.
Já rapaz, quando o conhecimento e as primeiras luzes do saber lhe
despertaram a inteligência, sua imaginação foi conquistada
definitivamente pelas predições de um dos mais férteis
escritores do século XIX: o famoso Júlio Verne. O imaginoso
escritor, criador de mundos, em que a inteligência infantil circulava
com desembaraço e prazer, tomou de assalto as primeiras manifestações
de seu espírito inventivo.
Os submarinos, os balões, os transatlânticos e todos os outros
meios de transporte que Júlio Verne previu com tanta felicidade,
envolveram o seu cérebro de jovem, despertando-lhe, do fundo do
subconsciente, a faculdade que já se acentuava instintivamente para
o domínio e manejo da mecânica. E não era sem razão
que o jovem Alberto dirigia as locomotivas Baldwin que o engenheiro
Henrique
Santos Dumont encomendara na Europa para o trabalho da companhia de
estrada
de ferro em que exercia a sua atividade e, nas fazendas de café
que, posteriorrnente, seu pai adquirira, se comprazia em consertar as
máquinas
da usina, quando estas quebravam.
"Dificilmente se conceberia meio mais sugestivo para a imaginação
de uma criança que sonha com invenções mecânicas.
Aos 7 anos, já eu tinha permissão para guiar os locomóveis
de grandes rodas empregados na nossa propriedade nos trabalhos do
campo.
Aos 12, deixavam-me tomar o lugar do maquinista das locomotivas Baldwin
que puxavam os trens carregados de café nas 60 milhas de via férrea
assentadas por entre as plantações. Enquanto meu pai e meus
irmãos montavam a cavalo para irem mais ou menos distante ver se
os cafeeiros eram tratados, se a colheita ia bem ou se as chuvas
causavam
prejuízos, eu preferia fugir para a usina, para brincar com as máquinas
de beneficia- mento". (1)
Esses fatos da vida de Santos-Dumont, narrados singelamente no seu
livro
Dans l'air, em que recapitula toda a primeira fase de sua luta para
conquista
do ar, têm grande significado, para se ver que a sua existência,
desde os primeiros passos, e toda a preocupação de sua vida,
na sua manifestação vocacional, foi dedicada e absorvida
pela preocupação do domínio dos ares pelo homem.(2)
Destinação
A destinação de Santos Dumont manifestou-se desde a infância
e, como as árvores, que, da semente, crescem, se desenvovem e dão
frutos, a sua existéncia de aeronauta passou por todas essas fases
de evolução vegetal: da ansiedade do menino, aos estudos
do rapaz, que prepararam o arcabouço das suas vitórias aeronáuticas:
a dirigibilidade do mais leve e a navegação com o mais pesado
que o ar.
E não há melhores fatos para comprovarem essas verdades do
que aqueles que relembra Santos-Dumont nestas belas páginas de sua
autobiografia:
"Ser-me-ia impossível dizer com que idade construí os
meus primeiros papagaios de papel. Lembro-me entretanto nitidamente das
troças que faziam de mim os meus camaradas, quando brincavam de
"passarinho-voa".
O divertimento é muito conhecido. As crianças colocam-se
em torno de uma mesa, e uma delas vai perguntando, em voz alta: "Pombo
voa?". . . "Galinha voa?". . . "Urubu voa?". . . "Abelha voa?"... E
assim
sucessivamente. A cada chamada todos nós devíamos levantar
o dedo e responder. Acontecia, porém, que, de quando em quando,
gritavam: "Cachorro voa?"... "Raposa voa?"... ou algum disparate
semelhante,
a fim de nos surpreender. Se algum levantasse o dedo tinha de pagar uma
prenda.
E meus companheiros não deixavam de piscar o olho e sorrir
maliciosamente
cada vez que perguntavam: "Homem voa?"... É que no mesmo instante
eu erguia o meu dedo bem alto, e res- pondia: "Voa!" com entonação
de certeza absoluta, e me recusava obstinadamente a pagar a prenda.
Quanto mais troçavam de mim mais feliz eu me sentia. Tinha a
convicção de que um dia os trocistas estariam ao meu lado.
Entre os milhares de cartas que me chegaram às mãos, no
dia em que ganhei o prêmio Deutsch, uma houve que me causou particular
emoção. Transcrevo-a a título de curiosidade:
"Você se lembra, meu caro Alberto, do tempo em que brincávamos
juntos de "Passarinho voa?" A recordação dessa época
veio-me ao espírito no dia em que chegou ao Rio a notícia
do seu triunfo. O homem voa, meu caro! Você tinha razão em
levantar o dedo, pois acaba de demonstrá-lo voando por cima da torre
Eiffel. E tinha razão em não querer pagar a prenda. O Senhor
Deutsch paga-a por você. Bravo! Você bem merece este prêmio
de 100.000 francos. O velho jogo está em moda em nossa casa mais
do que nunca; mas desde o 19 de Outubro de 1901 nós lhe trocamos
o nome e modificamos a regra: chamamo-lo agora o jogo do "Homem voa?" e
aquele que não levantar o dedo à chamada, paga prenda.
Seu amigo
Pedro."
Esta carta me transporta aos dias mais felizes de minha vida,
quando,
à espera de melhores oportunidades, eu me exercitava construindo
aeronaves de bambu, cujos propulsores eram acionados por tiras de
borracha
enroladas, ou fazendo efêmeros balões de papel de seda.
Cada ano, no dia 24 de junho, diante das fogueiras de São João,
que no Brasil constituem uma tradição imemorial, eu enchia
dúzias destes pequenos "mongolfiers" e contemplava extasiado a ascensão
deles ao céu.
Nesse tempo, confesso, meu autor favorito era Júlio Verne. A
sadia imaginação deste escritor verdadeiramente grande, atirando
com magia sobre as imutáveis leis da matéria, me fascinou
desde a infància. Nas suas concepções audaciosas eu
via, sem nunca me embaraçar em qualquer dúvida, a mecânica
e a ciência dos tempos do porvir, em que o homem, unicamente pelo
seu gênio, se transformaria em um semideus."
Essa verdadeira mania pelo vôo marcou Santos Dumont para toda a
vida
e a sua audácia, o seu gênio e a sua perseverança nunca
desmentida foram os motores que acionaram as idéias germinadas no
recesso de sua infância brasileira, cercada de sonhos e visões
do futuro, quando, como ele mesmo confessa:
"nas compridas tardes ensoleiradas do Brasil, minado pelo zumbido
dos
insetos e pelo grito distante de algum pássaro, deitado à
sombra da varanda, eu me detinha horas e horas a contemplar o céu
brasileiro e a admirar a facilidade com que as aves, com as suas longas
asas abertas, atingiam as grandes alturas. E ao ver as nuvens que
flutuavam
alegremente à luz pura do dia, sentia-me apaixonado pelo espaço
livre.
E era assim que, meditando sobre a exploração do grande
oceano celeste, por minha vez eu criava aeronaves e inventava máquinas".
(1) Santos Dumont - "Os meus balões" - Tradução
do original "Dans l'air", por A, de Miranda Bastos - Obra ilustrada com
os croquis executados por Santos Dumont para os seus dirigiveis.
Biblioteca
de Divulgação Aeronáutica. Volume 12, pág.
49.
(2) São significativas, nesse sentido, as pàginas de William
J. Claxton, cscritor inglês que acentua a verdadeira mania de
Santos.Dumont
pelo vôo: "The Flying was Santos-Dumont's great hobby. Even in boyhood,
when for away in Brazil, he had been keenly interested in the work of
Spencer,
Green, and others famous aeronauts, and aeronautics became almost a
passion
with him." (William J. Claxton - The mastery of the air - Fifth
edition,
Blackie and Son Limited, London, Glasgow and Bombay, 1918, pág.
134).