A toque de caixa a Fundação
Santos Dumont e a Prefeitura de São Paulo mudaram o Museu de Aeronáutica
do Ibirapuera para um parque de Cotia, onde as aeronaves estão se
deteriorando ao ar livre.
SEM PROTEÇÃO: como o
segundo jato de combate da história, este Gloster Meteor sobreviveu
a muitas batalhas. Hoje é derrotado pela umidade.
A cidade de São Paulo possui
um museu aeronáutico com um acervo que inclui aeronaves únicas
no mundo, mas que a população sequer sabe que existem. E
que correm o risco de se perderem para sempre.
Oficialmente, até o início
deste ano, um edifício público do Parque do Ibirapuera abrigava
o Museu de Aeronáutica de São Paulo, mantido pela Fundação
Santos Dumont. Devido a problemas, incluindo o mau estado do prédio,
o museu está fechado há 13 anos – o que significa que muitos
adolescentes jamais tiveram a chance de aprender algo mais sobre a aviação,
uma das maiores contribuições de um brasileiro ao desenvolvimento
da humanidade.
Muito se falou sobre a reabertura
do museu, até que no início do segundo semestre deste ano
iniciou-se uma solução às avessas – o museu foi convidado
a se retirar do Ibirapuera pela Prefeitura, que lhe cedeu uma área
no Centro Municipal de Campismo, o Cemucam, um parque pertencente à
Prefeitura de São Paulo, localizado na vizinha cidade de Cotia.
O transporte das aeronaves, desmontadas
e embaladas, foi feito pela Fink, que também se encarregou de todo
o resto do acervo – que inclui uma enorme biblioteca, maquetes, quadros
e várias outras peças. No Cemucam, tudo foi parar numa casa,
a antiga sede da fazenda que ocupava toda a área do parque. A casa,
que só pode ser alcançada por terra, e um terreno adjacente
foram cercados e uma placa no portão avisa que ali serão
feitas as “obras para as futuras instalações do Museu da
Aeronáutica”.
Prédio emprestado
Segundo o presidente da Fundação
Santos Dumont, Jorge Yunes, toda a mudança para o Cemucam foi apenas
“provisória”, para que o prédio no Ibirapuera pudesse ser
emprestado para uma “grande exposição de caráter nacional
a ser realizada pela (associação) ‘Brasil 500 Anos’. Pelo
acordo, a “Brasil 500 Anos” comprometeu-se a reformar o museu, que em troca
teria aceitado a mudança de seu acervo, “provisoriamente”, para
um outro local. O acordo teve mesmo o apoio do Banco Santos S.A., que chegou
a sondar empresas para fazer a remoção das aeronaves. Um
detalhe: um diretor do banco, Edemar Cid Ferreira, é o presidente
da “Brasil 500 Anos”.
Embora o decreto de aprovação
da transferência não tivesse sido assinado pelo prefeito Celso
Pitta até o dia 20 de outubro, uma “autorização provisória”
permitiu que a mudança se concretizasse com inesperada rapidez –
e sem qualquer divulgação. Na Prefeitura, o assunto é
de responsabilidade da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, cuja assessoria
de imprensa confirmou ter aprovado (e até incentivado) a transferência
para o Cemucam, pois também desejaria ver o prédio no Parque
do Ibirapuera disponível para o evento da “Brasil 500 Anos”. Procurado
pela reportagem, entretanto, o secretário Ricardo Ohtake não
quis falar sobre o assunto.
Apesar do caráter temporário,
o museu já começou a ser reorganizado em seu novo endereço,
com as aeronaves sendo remontadas. Yunes diz que o museu deverá
ser reaberto ao público no próprio Cemucam, onde permanecerá
“por um ano, ou um ano e meio” (ele não descarta a hipótese
de que este período seja prolongado). Yunes, que assumiu a presidência
da Fundação há dois anos e meio, diz que o prédio
“estava fechado há 11 anos quando eu assumi, mas nós fizemos
as reformas básicas necessárias e conseguimos a liberação
no Contru. Nós podíamos voltar a funcionar ali, mas surgiu
esse problema do ‘Brasil 500 Anos’ e decidimos negociar uma reforma mais
ampla, para depois voltarmos para o local”.
O acervo do museu compreende um total
de 15 aeronaves, sendo que a única que ainda não foi removida
do Ibirapuera é o hidroavião Savoia-Marchetti S.55, o “Jahú”
– exatamente a maior jóia da coleção. Construído
na primeira metade dos anos 20, todo em madeira e tela, ele foi usado na
épica travessia do Oceano Atlântico, em 1927, pelo aviador
paulista João Ribeiro de Barros. O “Jahú” é hoje o
único sobrevivente no mundo dos lendários “botes voadores”
dos anos 20!
O Jahú, no Campo de Marte
Yunes diz que o “Jahú”, que
chegou a ser infestado por cupins, está hoje “todinho restaurado,
num trabalho de especialistas”. Segundo ele, o avião deve ir, provisoriamente,
para a base do Grupamento de Rádio-Patrulha Aérea da Polícia
Militar, no Campo de Marte, “onde ficará exposto ao público”.
Como um museu pode ser tão
facilmente mudado de um lugar para outro não é o único
fato estranho, principalmente quando se trata de aviões – máquinas
cujo transporte em terra requer cuidados muito especiais. Yunes garante
que todo o trabalho de desmontagem, transporte e remontagem das aeronaves
foi feito por “firmas especializadas”. Todo este trabalho, porém,
está sob responsabilidade de uma única pessoa: Luiz Humberto
Pavan, de 42 anos, de Jundiaí (SP), um consultor de marketing na
área da indústria alimentícia.
Formado em engenharia química,
Pavan fez um curso de construção de aeronaves, tipo workshop,
em Oshkosh (EUA), ministrado pela Experimental Aircraft Association (Associação
de Aviação Experimental), e depois montou no Brasil um planador
Woodstock – modelo homebuilt (ou seja, feito para poder ser “construído
em casa”), cujas plantas completas podem ser adquiridas do fabricante por
não mais de US$ 125. Com este currículo, tornou-se desde
outubro de 1998 o responsável pela recuperação do
precioso “Jahú” e mais tarde também pelos serviços
de desmontagem e remontagem das outras aeronaves.
Mesmo sendo um trabalho minucioso,
Pavan faz quase tudo sozinho, no máximo trabalha com dois free-lancers.
O Museu Aeroespacial, mantido pela Força Aérea Brasileira
e sediado no Campo dos Afonsos (RJ), jamais recebeu qualquer consulta sobre
esse trabalho de restauro. Isto, apesar de possuir uma das melhores equipes
de restauro de aeronaves antigas da América Latina. Pavan reconhece
que, apesar de “saber da existência”, jamais pensou em fazer um contato
com a ABAAC (Associação Brasileira de Aeronaves Antigas e
Clássicas), que entre seus associados conta com muitos peritos em
restauração, além de engenheiros aeronáuticos,
especialistas em motores e outros técnicos.
Nem todos concordam com os métodos
de Pavan. Trabalhando com aeronaves antigas há 25 anos, Lúcio
Sallowicz considera que o ideal é trazer para hoje o aspecto que
esta máquina tinha tal como foi construída. Para ele, trata-se
de um trabalho minucioso, que pode levar anos. Além disso, considera
a troca de experiências com outros restauradores fundamental, “principalmente
com os mais antigos”.
Para Sallowicz, recuperar um avião
antigo e construir uma aeronave antiga são coisas muito diferentes.
“O avião homebuilt vem em kit ou com as plantas completas, e o que
você faz é uma montagem. Mas o avião antigo não
vem com nada pronto. Você precisa pesquisar, tentar descobrir uma
planta, conferir as dimensões de cada peça. A dificuldade
é bem maior”. Ele sabe muito bem do que está falando, pois
com 46 anos como piloto Sallowicz é proprietário de um dos
aviões mais antigos do Brasil ainda voando, um biplano Fleet 5 construído
em 1933.