Contradições de Santos Dumont 

 

JB Domingo, 7 de maio de 2000

Enquanto herdeira tenta dar destino a  acervo do inventor no Brasil, biógrafo americano reconhece seu pioneirismo na aviação e dois filmes tentam reconstruir o mito

Trata-se de um legítimo parodoxo brasileiro: Paul Hoffman, um americano corpulento metido em trajes de estudante, passou o feriado de 1° de maio trancafiado num apartamento da Praia do Flamengo sob o olhar atento da dona do imóvel, Sophia Helena Dodsworth Wanderley, copiando os cinco volumes de fotos e documentos inéditos de Santos Dumont.

O homem sabe o que quer: Hoffman, de 44 anos, se propõe a lançar em 2001 a biografia definitiva do pai da aviação com o título Asas da loucura. A mulher vive um dilema: sobrinha-neta do primeiro garoto-propaganda do Brasil, dona Sophia Helena, de 85, quer transformar o acervo em CD-ROM antes de repassá-lo a algum museu, mas não sabe como. É uma encruzilhada parecida àquela em que estão os diretores Marcone Pereira Simões e Tizuka Yamazaki. Ele tem certificado para captar R$ 4,5 milhões para realizar Santos Dumont, o filme. Ela tem um projeto sobre o personagem há 14 anos. Nenhum dos dois decolou um fotograma sequer (leia na página 2).

Paul Hoffman, formado em História da Ciência por Harvard e autor de "O homem que amava somente os números", livro sobre um cientista que percorria o mundo decifrando problemas matemáticos, encontrou no apartamento de Sophia Helena muito mais do que um pesquisador esperava encontrar. Inventor genial e vaidoso, Alberto Santos Dumont tinha sob contrato no começo do século passado pelo menos quatro agências - duas em Paris, uma em Londres e uma em Nova Iorque - encarregadas de recortar toda notícia, nota em coluna social e charge que saísse sobre ele em qualquer jornal do mundo. Só para uma dessas empresas, o Le Courrier de la Presse, pagava 30 centavos de franco por recorte.

Havia também uma tabela mais em conta: 25 francos para cada 100 recortes ou 200 francos para cada bolo de 1.000. O trabalho produziu a seguinte estatística: em 1889, 133 recortes; em 1900, 203; em 1901, ano em que Santos Dumont deu à volta na Torre Eiffel pilotando o balão n° 6 e provou ao mundo que a engenhoca podia ser dirigida pelo homem, foram 7.689; em 1902, 3.995; e, finalmente, em 1903, 608. Ao todo são 12.628 pedaços de jornais velhos em que o nome dele aparece ao menos uma vez ou repetido várias outras em peripécias que espantavam o mundo.

Os recortes, misturados a fotografias e cartas nos três primeiros livros da coleção de cinco volumes, compõem um diário inestimável de 2 mil páginas do período provavelmente mais completo da fecundidade do brasileiro. "Os clipes são documentos preciosos", diz Paul Hoffman. "Eles testemunham onde Santos Dumont estava, o que fazia e o que pretendia fazer praticamente dia-a-dia." Depois de oito meses de pesquisa, entrevistas com 50 especialistas e um roteiro de viagens que já incluiu duas vindas ao Brasil e prevê outras por lugares como Lisboa, Paris e Montecarlo, freqüentados por Santos Dumont em sua temporada européia, o escritor ainda não arrisca afirmar categoricamente que ele foi o inventor do avião.

Trata-se de um tema que pouca gente na terra dos irmãos Wright sequer teria coragem de abordar. O presidente Bill Clinton chamou o brasileiro de pai da aviação no discurso de saudação a Fernando Henrique Cardoso na visita que fez ao Brasil em outubro de 1997, mas entre dizer isso longe da opinião pública americana num gesto diplomático e reconhecer historicamente o fato vai uma distância muito maior do que os 60 metros percorridos pelo 14-Bis em 23 de outubro de 1906. "Por enquanto, as pesquisas apontam Santos Dumont como o primeiro a voar em público", admite Hoffman.

 O acervo de recortes, documentos e cartas estava na casa que o inventor mandou construir em Petrópolis. Foi tudo trazido num baú de vime junto com objetos pessoais logo depois de sua morte. Resistiu a uma ressaca do mar que invadiu o porão da casa da família, onde hoje está o edifício em que mora Sophia Helena, e a três décadas de abandono até começar a ser organizado no final dos anos 60 pelo brigadeiro Nélson Freire Lavener Wanderley, ministro da Aeronáutica do governo Castelo Branco. O melhor está nos três primeiros volumes. Os  dois últimos livros reúnem outras preciosidades - como o recibo de uma consulta do inventor ao doutor Juliano Moreira, especialista em doenças mentais e sífilis, em 3 de outubro de 1925, que lhe custou 100 mil réis - mas são resultado mais da meticulosidade do brigadeiro.

 Sabe-se lá porque Santos Dumont não guardou na casa de Petrópolis recortes das agências depois de 1903, quando parou de se dedicar aos balões para apostar no vôo de uma máquina mais pesada que o ar. Paulo Hoffman espera desvendar o mistério na biografia, só não tem como ajudar a viúva Sophia Helena. "Gostaria que o acervo fosse democratizado às escolas do país antes de doá-lo a algum museu", diz ela. "Museu é coisa de velho, ninguém vai."

Filmes sobre o inventor não decolam

A saga do inventor Santos Dumont virou também a saga dos diretores Marcone Pereira Simões e Tizuka Yamazaki. Os dois compartilham a idéia de levar para o cinema a história do brasileiro que realizou o sonho de Ícaro. Até agora, por enquanto, são parceiros apenas de uma frustração. Os dois projetos têm certificado do Ministério da Cultura para a captação pelas leis do Audiovisual e Rouanet, mas ainda não apareceu investidor com cacife suficiente para bancá-los.

Tizuka Yamazaki, diretora de Gaijin e Parahyba, mulher macho, além de algumas travessuras cinematográficas lucrativas da apresentadora Xuxa Meneghel, sacou o projeto dela do baú há dois anos. A empreitada precisa de R$ 15 milhões para chegar às telas de cinema. A primeira vez que a diretora falou na idéia foi em 1986. De lá para cá, o projeto adormeceu no berço nada esplêndido da falta de recursos. "Não posso fazer um filme tímido sobre um personagem tão ousado", diz Tizuka. "A invenção dele mudou radicalmente o mundo, não pode ser reduzida a um projeto barato."

Marcone Pereira Simões não voa tão alto. Santos Dumont, o filme marcará a estréia dele num longa. O projeto nasceu com a pretensão de ser um filme de R$ 7,5 milhões e tem até site na internet (www.santos-dumont-o-filme.com.br). Em 1998 e no ano passado não captou mais de 10%. O diretor acha que com R$ 4,5 milhões faz uma obra à altura de Santos Dumont.

"Ele foi o primeiro brasileiro de projeção internacional, antes de Carmen Miranda e Pelé", diz Marcone, formado pela Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, a 30 quilômetros de Havana, em Cuba, criada há 12 anos com o apoio de gente como o escritor Gabriel Garcia Márquez e o cineasta Francis Ford Coppola. "Santos Dumont é um ícone da liberdade", diz o estreante.

O projeto de filmar a história do inventor começou a ganhar forma na cabeça do paraibano Marcone Pereira Simões há cinco anos. Primeiro, ele devorou todas as biografias sobre o personagem. Depois, foi a Paris conhecer os lugares em que viveu. Reuniu nesse tempo todo 500 fotografias que, espera, lhe sirvam de inspiração para recriar a atmosfera da época e submeteu o roteiro a especialistas como José Louzeiro.

A história começa com Santos Dumont já aos 18 anos e termina com o vôo do 14 bis. Não arranha nem de perto o drama pessoal que o levou ao suicídio. "Santos Dumont era o herói do novo mundo. O fim do filme dispensa a morte", diz o diretor. "A vida dele tem pontos que poderiam ser explorados dramaturgicamente, mas o final feliz ideal seria o do dia do vôo do 14 bis."

A experiente Tizuka Yamazaki também vai por essa trilha. "Não quero fazer um filme sobre um herói que se suicidou, mas sim contar a história de um garoto que perseguiu o sonho de voar", avisa a diretora. "A vida pessoal dele é uma incógnita, a opção sexual não foi importante para a realização do ideal que perseguiu. Para mim interessa a trajetória do jovem do interior de São Paulo que vai a Paris desafiar a física e conquistar a admiração do mundo."

Diretor e diretora concordam também sobre o caráter curioso de dois filmes sobre Santos Dumont não decolarem a apenas um ano das comemorações do centenário do feito do balão n° 6. "A trajetória de Santos Dumont traduz o que é o Brasil: é mais fácil vencer lá fora do que aqui", diz Marcone. "Se o país não assume que Santos Dumont é um herói nacional é melhor deixar que ele seja confundido com argentino ou que o título de pai da aviação fique com os irmãos Wright", afirma Tizuka. "Nossa dificuldade é emblemática e não é surpresa que Santos Dumont seja resgatado por um historiador americano", completa Marcone.

O fio de esperança dos dois não vai mudar muito a constatação. Tanto o estreante Marcone Pereira quanto a tarimbada Tizuka Yamazaki esperam viabilizar os dois filmes numa co-produção com a França. Talvez seja o final possível.

 PAULO VASCONCELLOS

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