Enquanto herdeira tenta dar destino a acervo do inventor no Brasil,
biógrafo americano reconhece seu pioneirismo na aviação
e dois filmes tentam reconstruir o mito
Trata-se de um legítimo parodoxo brasileiro: Paul Hoffman, um americano
corpulento metido em trajes de estudante, passou o feriado de 1° de
maio trancafiado num apartamento da Praia do Flamengo sob o olhar atento
da dona do imóvel, Sophia Helena Dodsworth Wanderley, copiando os
cinco volumes de fotos e documentos inéditos de Santos Dumont.
O homem sabe o que quer: Hoffman, de 44 anos, se propõe a lançar
em 2001 a biografia definitiva do pai da aviação com o título
Asas da loucura. A mulher vive um dilema: sobrinha-neta do primeiro garoto-propaganda
do Brasil, dona Sophia Helena, de 85, quer transformar o acervo em CD-ROM
antes de repassá-lo a algum museu, mas não sabe como. É
uma encruzilhada parecida àquela em que estão os diretores
Marcone Pereira Simões e Tizuka Yamazaki. Ele tem certificado para
captar R$ 4,5 milhões para realizar Santos Dumont, o filme. Ela
tem um projeto sobre o personagem há 14 anos. Nenhum dos dois decolou
um fotograma sequer (leia na página 2).
Paul Hoffman, formado em História da Ciência por Harvard e
autor de "O homem que amava somente os números", livro sobre um
cientista que percorria o mundo decifrando problemas matemáticos,
encontrou no apartamento de Sophia Helena muito mais do que um pesquisador
esperava encontrar. Inventor genial e vaidoso, Alberto Santos Dumont tinha
sob contrato no começo do século passado pelo menos quatro
agências - duas em Paris, uma em Londres e uma em Nova Iorque - encarregadas
de recortar toda notícia, nota em coluna social e charge que saísse
sobre ele em qualquer jornal do mundo. Só para uma dessas empresas,
o Le Courrier de la Presse, pagava 30 centavos de franco por recorte.
Havia também uma tabela mais em conta: 25 francos para cada 100
recortes ou 200 francos para cada bolo de 1.000. O trabalho produziu a
seguinte estatística: em 1889, 133 recortes; em 1900, 203; em 1901,
ano em que Santos Dumont deu à volta na Torre Eiffel pilotando o
balão n° 6 e provou ao mundo que a engenhoca podia ser dirigida
pelo homem, foram 7.689; em 1902, 3.995; e, finalmente, em 1903, 608. Ao
todo são 12.628 pedaços de jornais velhos em que o nome dele
aparece ao menos uma vez ou repetido várias outras em peripécias
que espantavam o mundo.
Os recortes, misturados a fotografias e cartas nos três primeiros
livros da coleção de cinco volumes, compõem um diário
inestimável de 2 mil páginas do período provavelmente
mais completo da fecundidade do brasileiro. "Os clipes são documentos
preciosos", diz Paul Hoffman. "Eles testemunham onde Santos Dumont estava,
o que fazia e o que pretendia fazer praticamente dia-a-dia." Depois de
oito meses de pesquisa, entrevistas com 50 especialistas e um roteiro de
viagens que já incluiu duas vindas ao Brasil e prevê outras
por lugares como Lisboa, Paris e Montecarlo, freqüentados por Santos
Dumont em sua temporada européia, o escritor ainda não arrisca
afirmar categoricamente que ele foi o inventor do avião.
Trata-se de um tema que pouca gente na terra dos irmãos Wright sequer
teria coragem de abordar. O presidente Bill Clinton chamou o brasileiro
de pai da aviação no discurso de saudação a
Fernando Henrique Cardoso na visita que fez ao Brasil em outubro de 1997,
mas entre dizer isso longe da opinião pública americana num
gesto diplomático e reconhecer historicamente o fato vai uma distância
muito maior do que os 60 metros percorridos pelo 14-Bis em 23 de outubro
de 1906. "Por enquanto, as pesquisas apontam Santos Dumont como o primeiro
a voar em público", admite Hoffman.
O acervo de recortes, documentos e cartas estava na casa que o inventor
mandou construir em Petrópolis. Foi tudo trazido num baú
de vime junto com objetos pessoais logo depois de sua morte. Resistiu a
uma ressaca do mar que invadiu o porão da casa da família,
onde hoje está o edifício em que mora Sophia Helena, e a
três décadas de abandono até começar a ser organizado
no final dos anos 60 pelo brigadeiro Nélson Freire Lavener Wanderley,
ministro da Aeronáutica do governo Castelo Branco. O melhor está
nos três primeiros volumes. Os dois últimos livros reúnem
outras preciosidades - como o recibo de uma consulta do inventor ao doutor
Juliano Moreira, especialista em doenças mentais e sífilis,
em 3 de outubro de 1925, que lhe custou 100 mil réis - mas são
resultado mais da meticulosidade do brigadeiro.
Sabe-se lá porque Santos Dumont não guardou na casa
de Petrópolis recortes das agências depois de 1903, quando
parou de se dedicar aos balões para apostar no vôo de uma
máquina mais pesada que o ar. Paulo Hoffman espera desvendar o mistério
na biografia, só não tem como ajudar a viúva Sophia
Helena. "Gostaria que o acervo fosse democratizado às escolas do
país antes de doá-lo a algum museu", diz ela. "Museu é
coisa de velho, ninguém vai."
Filmes sobre o inventor não decolam
A saga do inventor Santos Dumont virou também a saga dos diretores
Marcone Pereira Simões e Tizuka Yamazaki. Os dois compartilham a
idéia de levar para o cinema a história do brasileiro que
realizou o sonho de Ícaro. Até agora, por enquanto, são
parceiros apenas de uma frustração. Os dois projetos têm
certificado do Ministério da Cultura para a captação
pelas leis do Audiovisual e Rouanet, mas ainda não apareceu investidor
com cacife suficiente para bancá-los.
Tizuka Yamazaki, diretora de Gaijin e Parahyba, mulher macho, além
de algumas travessuras cinematográficas lucrativas da apresentadora
Xuxa Meneghel, sacou o projeto dela do baú há dois anos.
A empreitada precisa de R$ 15 milhões para chegar às telas
de cinema. A primeira vez que a diretora falou na idéia foi em 1986.
De lá para cá, o projeto adormeceu no berço nada esplêndido
da falta de recursos. "Não posso fazer um filme tímido sobre
um personagem tão ousado", diz Tizuka. "A invenção
dele mudou radicalmente o mundo, não pode ser reduzida a um projeto
barato."
Marcone Pereira Simões não voa tão alto. Santos Dumont,
o filme marcará a estréia dele num longa. O projeto nasceu
com a pretensão de ser um filme de R$ 7,5 milhões e tem até
site na internet (www.santos-dumont-o-filme.com.br). Em 1998 e no ano passado
não captou mais de 10%. O diretor acha que com R$ 4,5 milhões
faz uma obra à altura de Santos Dumont.
"Ele foi o primeiro brasileiro de projeção internacional,
antes de Carmen Miranda e Pelé", diz Marcone, formado pela Escola
de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, a 30 quilômetros
de Havana, em Cuba, criada há 12 anos com o apoio de gente como
o escritor Gabriel Garcia Márquez e o cineasta Francis Ford Coppola.
"Santos Dumont é um ícone da liberdade", diz o estreante.
O projeto de filmar a história do inventor começou a ganhar
forma na cabeça do paraibano Marcone Pereira Simões há
cinco anos. Primeiro, ele devorou todas as biografias sobre o personagem.
Depois, foi a Paris conhecer os lugares em que viveu. Reuniu nesse tempo
todo 500 fotografias que, espera, lhe sirvam de inspiração
para recriar a atmosfera da época e submeteu o roteiro a especialistas
como José Louzeiro.
A história começa com Santos Dumont já aos 18 anos
e termina com o vôo do 14 bis. Não arranha nem de perto o
drama pessoal que o levou ao suicídio. "Santos Dumont era o herói
do novo mundo. O fim do filme dispensa a morte", diz o diretor. "A vida
dele tem pontos que poderiam ser explorados dramaturgicamente, mas o final
feliz ideal seria o do dia do vôo do 14 bis."
A experiente Tizuka Yamazaki também vai por essa trilha. "Não
quero fazer um filme sobre um herói que se suicidou, mas sim contar
a história de um garoto que perseguiu o sonho de voar", avisa a
diretora. "A vida pessoal dele é uma incógnita, a opção
sexual não foi importante para a realização do ideal
que perseguiu. Para mim interessa a trajetória do jovem do interior
de São Paulo que vai a Paris desafiar a física e conquistar
a admiração do mundo."
Diretor e diretora concordam também sobre o caráter curioso
de dois filmes sobre Santos Dumont não decolarem a apenas um ano
das comemorações do centenário do feito do balão
n° 6. "A trajetória de Santos Dumont traduz o que é o
Brasil: é mais fácil vencer lá fora do que aqui",
diz Marcone. "Se o país não assume que Santos Dumont é
um herói nacional é melhor deixar que ele seja confundido
com argentino ou que o título de pai da aviação fique
com os irmãos Wright", afirma Tizuka. "Nossa dificuldade é
emblemática e não é surpresa que Santos Dumont seja
resgatado por um historiador americano", completa Marcone.
O fio de esperança dos dois não vai mudar muito a constatação.
Tanto o estreante Marcone Pereira quanto a tarimbada Tizuka Yamazaki esperam
viabilizar os dois filmes numa co-produção com a França.
Talvez seja o final possível.