Santos=Dumont em imagem que vai ser usada no
documentário de Nelson Hoineff
Jornal do Brasil - Terça 18/2/2003 - Caderno B Norma Couri Especial para
o JB
É bem possível que os americanos aprontem uma guerra
contra o Brasil antes de atacarem o Iraque. Os bombardeios estão
preparados para o começo deste ano, recheados de pirotecnias e
piruetas no ar. Enquanto os EUA festejam irmãos Wright, filmes
brasileiros sobre o pai da aviação não saem do
papel.
É bem possível que os americanos aprontem uma guerra
contra o Brasil antes de atacarem o Iraque. Os bombardeios estão
preparados para o começo deste ano, recheados de pirotecnias e
piruetas no ar. Tudo para festejar, ao custo de U$ 200 milhões,
para 14 milhões de visitantes, o centenário da
aviação, homenageando os irmãos Wright. Vai ser
uma batalha difícil de o Brasil vencer, porque até agora
o país não se mexeu sobre o assunto. Os protestos
vêm da inglesa Nancy Winters, que tenta emplacar um musical sobre
Santos=Dumont, baseado no seu livro Man flies ( O homem voa). As
reclamações também vêm dos franceses, que
apressam seu filme sobre o pai brasileiro da aviação, e
dos cubanos, que têm um projeto de desenho animado.
No Brasil, há pelo menos dois cineastas prontos para a revanche,
mas sem dinheiro para concluir as produções. O paraibano
Marcone Pereira Simões tem um filme a ser rodado no Brasil e na
França, com Pedro Cardoso como Santos=Dumont. Mas, do
orçamento de U$ 4 milhões, tem U$ 1,5 milhão dos
franceses e 5% do total bancado pela Aço Villares, que pertencia
a um descendente do aviador. O projeto está em
pré-filmagem há cinco anos.
- Quando os festejos americanos começarem o Brasil acorda - diz.
Nelson Hoineff optou por um documentário de 52 minutos em
high definition, com projeções em grandes formatos,
espaços temáticos em aeroportos e vídeos em
escolas públicas. A distribuição internacional
seria através do Discovery Channel. Mas Hoineff ainda não
conseguiu os U$ 300 mil para o projeto.
- Mesmo que não haja testemunho para o tal vôo pioneiro
dos irmãos Wright, o marketing americano é tão
forte que vai escamotear o resto da história da
aviação - ressalta ele.
Santos=Dumont é uma importante figura histórica.
Já ganhou várias biografias, da escrita em 1940 por
Gondim da Fonseca até Uma alegria selvagem, de Bia Hetzel,
há três meses. Na fotobiografia Eu naveguei pelo ar, num
texto de 1898 Dumont não deixa dúvidas sobre o
pioneirismo: ''Os pássaros devem experimentar a mesma
sensação, quando distendem suas longas asas e seu
vôo fecha o céu... Ninguém, antes de mim, fizera
igual''.
Sem cobrir o orçamento de U$ 15 milhões, Tizuka
Yamazaki tentou colocar na tela o livro de Márcio de Souza O
brasileiro voador. O projeto tem 18 anos.
- Adiei, talvez para sempre - diz ela.
Uma pena. O mineiro deixou os parisienses de queixo caído
há 97 anos. A bordo de seu avião de seda japonesa,
madeira, bambu e ferro, batizado de 14-Bis, sobrevoou, com 33 anos, 220
metros do Campo de Bagatelle durante 21 segundos. A platéia era
de 300 mil pessoas. Figura de dândi, corpo de jóquei que
cuidava para não passar dos 50 quilos, Alberto Santos=Dumont
começou a ostentar aí o título de pai da
aviação.
Então os americanos estariam certos em comemorar o
centenário da aviação, pois Wilbur e Orville
Wright juram ter voado em 1903, três anos antes, na cidadezinha
americana de Dayton, Ohio. Só que ninguém viu.
Além disso, sua invenção, Flyer, era um planador
motorizado, catapultado contra o vento e o Aeroclube da França
exigia o testemunho de uma comissão científica e que o
aparelho levantasse vôo por seus próprios meios.
Sob glórias e dramas
Ao contráriodos irmãos Wright, Santos=Dumont
teve testemunhas em seu primeiro vôo, em Paris.
Aqui o vemos ao lado do Demoiselle.
Os irmãos Wright só passaram a utilizar rodas em
1910, quatro anos depois de o Le Matin, o L'Illustration e o The
Illustrated London News terem rasgado manchetes para Santos=Dumont. O
brasileiro tinha ido para Paris com o pai, Henrique Dumont, que foi
buscar tratamento depois de uma queda que o deixou paraplégico.
Na Belle Époque francesa, Alberto dedicou o tempo a
experiências com balões, triciclos e dirigíveis.
Inventou o hangar, o relógio de pulso industrializado por
Cartier e o hidroplano no Sena. Quando contornou a Torre Eiffel em 30
minutos e 30 segundos, derrotou o conde Zepelim da Alemanha e
distribuiu os 125 mil francos do prêmio entre os mecânicos.
Tem uma estátua de três metros no Bois de Boulogne, que
foi destruída pelos nazistas em 1939.
Mas nem tudo era glória. Era comum ver Santos=Dumont enganchado
em galhos, como nos jardins do magnata Edmond de Rothschild. Na
ocasião, a vizinha princesa Isabel mandou-lhe, nas alturas
mesmo, uma cesta de petiscos e a medalhinha de São Benedito.
Seus balões foram várias vezes cortados a golpes de
faca.
Sempre que entrava no Maxim's, era aplaudido de pé.
O primeiro ultraleve do mundo, seu Demoiselle, de 1907, está
exposto até hoje no Museu do Ar e do Espaço da
França.
Sua sobrinha-neta de 87 anos, Sophia Helena Dodsworth Wanderley,
aguarda até hoje no Rio alguém interessado em transformar
em CD-rom cinco álbuns com 12.500 notícias da
época.
Se isso tudo não bastasse para comover patrocinadores,
há ainda o drama da morte de Santos=Dumont, que no dia 20 de
julho completa 130 anos de nascimento. Tinha 59 anos, mas, com
esclerose múltipla, aparentava 80.
Deprimido pelo uso bélico de sua invenção na
Primeira Guerra e na Revolução Constitucionalista, em
1932, amarrou duas gravatas no chuveiro do banheiro do hotel La Plage,
em Guarujá, e se suicidou.
O quarto onde se matou era o 152, que somava 8, número que
dava horror ao superticioso aviador, entre outras manias. Na casa de
Petrópolis, a escada foi construída para obrigar o
visitante a entrar com o pé direito. Ficou a fama de
pé-frio depois que o avião da Condor que ia saudar sua
volta ao Brasil caiu no mar em 1928, matando jornalistas e
políticos. Santos=Dumont assistiu à tragédia do
transatlântico Cap Ancona. No dia do seu enterro, desabou um
temporal e o avião que Louis Blériot batizou de
Santos=Dumont caiu, matando o piloto.
Mas os cineastas Simões e Hoineff não acreditam na
falta de sorte do aviador, ou ele não teria sobrevivido a tantas
quedas, sendo o único
homem a sobrevoar, na época, os céus de Paris.
Se seus filmes não decolarem este ano, vai ser por pura
falta de sorte mesmo. Porque a personalidade excêntrica e genial
de Santos=Dumont tem molho suficiente para ganhar as telas do mundo,
muito mais do que os irmãos Wright, que, segundo o pesquisador
americano Barth Schwartz, ''eram extremamente chatos''.