Santos=Dumont encontra Proust

 Obra de Gerveux

"Une Soirée au Pré Catelan" - 1909
Obra de Henri Alexandre Gerveux (1852-1929)

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Alcino Leite Neto
16/11/2001

A joalheria Cartier faz mais pela memória do aviador do que o Brasil inteiro

Santos=Dumont é um personagem brasileiro extraordinário. Está em todos os livros escolares, é invocado na hora dos arroubos patrióticos como o inventor do avião, mas em geral sua história e sua memória são coisas que não interessam a muita gente no Brasil.

Para se ter idéia, as biografias brasileiras de Santos=Dumont são raríssimas, estão todas esgotadas e foram escritas há décadas, como "Vida de Santos=Dumont", de Ofelia e Narbel Fontes (Editora A Noite) e "Alberto Santos=Dumont", de Oscar Fernandes Brital (Instituto Argentino-Brasileiro).

As melhores já feitas, curiosamente, são de dois ingleses, sem tradução no país: "Santos=Dumont - A Study in Obsession", de Peter Wykeham, vice-marechal da Royal Air Force, e "Man Flies : The Story of Alberto Santos=Dumont, Master of the Balloon, Conqueror of the Air", de Nancy Winters. Um belo álbum de imagens foi coordenado por Stéphane Nicolaou: "Santos=Dumont - Dandy et Génie de l'Aéronautique".

O escritor Márcio Souza, que nunca pretendeu ser biógrafo, escreveu uma história semi-romanceada de Santos=Dumont em "O Brasileiro Voador". A diretora Tizuka Yamasaki queria filmar as suas aventuras, mas desistiu, por falta de financiamento, parece. O aviador não foi honrado nem sequer com uma minissérie na televisão.

Estão comemorando alguma coisa aí no Brasil a respeito de Santos=Dumont? Pois na França, estão, sim senhor. Fazem cem anos que o aviador recebeu o Prêmio Deutsch, por ter circundado a Torre Eiffel num dirigível, em tempo recorde. Por isso, ele ganhou uma exposição sobre sua vida em St. Cloud, cidade ao lado de Paris, quase um bairro da capital, de onde o dirigível partiu e para onde voltou e que abrigava o Aéro-Club de Paris e as oficinas de Santos=Dumont.

Ninguém na França ainda alimenta a ilusão de que o brasileiro tenha de fato sido o primeiro a voar num aparelho mais pesado do que o ar (um avião). Foram os irmãos Wright _mas e daí? O brasileiro permanece ainda assim uma celebridade histórica no país. É uma dos mitos da Belle Époque e do início do século franceses.

A famosa relojoaria Cartier tem feito mais pela memória de Santos=Dumont do que o Brasil inteiro. Não apenas conserva uma amplíssima coleção de documentos pessoais e de época a respeito do brasileiro (expostos em St. Cloud), como o transformou em uma grife elegante, na série de relógios Santos e também nos perfumes masculinos Santos.

Santos=Dumont foi amigo de Louis Cartier e encomendou a ele um relógio mais fácil de usar do que o de bolso: daí teria surgido em 1904 o aparelho de pulso, com pulseira de couro, que o relojoeiro denominou Santos e é reproduzido e vendido até hoje, com sucesso. O preço varia, conforme o modelo, entre US$ 1.600 e 2.500. Os suíços contestam que Cartier tenha sido o inventor do relógio de pulso, alegando que o criaram em 1790 _e mais uma vez: e daí? É mais uma das lendas em torno de Santos=Dumont, que só fazem a sua vida mais rica e curiosa.

Não foi apenas Cartier que Santos=Dumont encontrou na França na passagem do século, quando Paris estava no apogeu de sua vida econômica e cultural. Milionário, elegantemente vestido, embora de estatura baixa (1m52), ele frequentava a aristocracia e alta burguesia européias, e era por ela visitado, inclusive na oficina, passeio que virou programa da elite depois de seus sucessivos êxitos na aviação.

Foi figura requisitada nos salões e nos jantares finos. Seus chapéus e ternos viraram moda. E se tornou um mito popular em Paris, tanto pelos seus feitos, quanto por sua generosidade _ele deu metade do prêmio Deutsch, uma fortuna na época, para seus técnicos e a outra metade para a caixa de penhores da capital, a fim de que as pessoas pudessem resgatar os seus bens.

Wykeman escreve em sua biografia, a respeito dos dias seguintes aos da premiação: "Sua glória chegou ao zênite: uma irradiação mundial. (...) Santos se tornou uma coqueluche de Paris. Era um ídolo, glorificado de todas as maneiras: cartões-postais, fotografias, souvenirs; todas as lojas de Paris se inspiraram no brasileiro e no seu dirigível para vender. Quando ele aparecia em um lugar público, a massa se amontoava em torno dele".

O biógrafo reproduz um trecho do livro de Ofelia e Narbel Pontes: "Fotografavam seu hangar, seu ateliê, sua casa, seus livros, suas invenções e seus automóveis. Os repórteres inquiriam sobre seus hábitos, seus gostos e seus ideais. Toda a imprensa se ocupava de sua vida".

Sendo uma presença tão célebre em Paris, é estranho que não haja de Santos=Dumont nem uma referência sequer em "À Procura do Tempo Perdido" (A la Recherche du Temps Perdu), obra-prima de Marcel Proust, que é também um panorama dessa mesma época e do "grand monde" que o aviador frequentou.

A "Recherche" é um universo inteiro e atua nos leitores conforme vibrações variadas. Por isso, precisa ser lida e relida. A atenção flutuante e derivativa ora se fixa num tema ou numa passagem, ora em outros. Por algum motivo, este colunista pode ter deixado passar a referência ao aviador, mas ao que me consta o único brasileiro que aparece na obra de Proust é um médico, que vai tratar da avó do narrador. Só proustianos de carteirinha, como Antonio Candido, Marcelo Coelho e José Maria Cançado, poderiam no entanto dar a palavra final ao leitor sobre se Santos=Dumont é ou não citado na "Recherche".

Proust pode nunca ter cruzado com Santos=Dumont, nem ter sido a ele apresentado, mas certamente acompanhou as proezas do aviador, que devem também ter sido objeto de sua leitura nos numerosos artigos que foram dedicados ao brasileiro pelas revistas famosas da época, como a "Figaro Illustré", e que estão expostos em St. Cloud. No jornal "Figaro", do mesmo grupo da revista, Proust escreveu aliás algumas de suas crônicas sobre os salões parisienses.

Pode ser loucura tentar imaginar o encontro de Proust e Santos=Dumont, mas para os brasileiros que admiram o aviador e são ao mesmo tempo devotos da "Recherche", a ausência do brasileiro na obra é tão desoladora quanto reconhecer que ele não teria inventado o "mais pesado que o ar".

A desolação não teria fim, caso não estivesse acontecendo em Paris uma interessante _e reconfortadora_ exposição, no ótimo Museu Carnavalet.

A exposição se chama "No Tempo de Marcel Proust" e reúne 160 obras (pinturas, aquarelas, desenhos e gravuras) da coleção do marchand François-Gérard Seligmann (1912-1999). Os trabalhos foram doados agora ao museu pela viúva de Seligman e farão parte do acervo, em sala especial, com o nome do colecionador.

O marchand adorava a obra de Proust e acabou reunindo tudo o que podia sobre a Belle Époque francesa, o período proustiano por excelência. As obras na sua maioria são de cenas da vida parisiense na época, os restaurantes elegantes, os passeios chiques, retratos de mulheres e homens da alta burguesia e da nobreza, mas também de mundanas e mundanos de todo tipo. São pinturas, portanto, em boa parte feitas sob encomenda, para enfeitar salas e salões, por artistas de boa fatura, mas do segundo time, se se pensa que são contemporâneos de Renoir, Cézanne e Degas.

Pois bem. Uma das maiores telas da exposição é "Une Soirée au Pré Catelan" (1909), de Henri Alexandre Gerveux (1852-1929). Representa a inauguração de um restaurante sofisticado, no Bois de Boulogne, do qual vemos a entrada, com os carros que chegam e saem, e as grandes portas que dão para o salão de refeições, abertas, por onde avistamos os convivas, sentados às mesas.

No centro da composição, na entrada do restaurante, estão retratados o duque Elie de Talleyrand-Périgord e sua mulher, a milionária americana Anna Gould, que encontram Mme. Gerveux, esposa do pintor. Na parte direita do quadro, dentro do restaurante, surge a "semi-mundana" (descrição do museu) Liane de Pougy, o marquês de Dion, fundador do Aéro-Club da França e também do Automóvel Club, e em outra mesa... "o aeronauta Santos=Dumont".

Proust não compareceu na noite elegante do Pré Catelan do quadro de Gerveux, mas é um alívio saber que de alguma forma Santos=Dumont acabou entrando em seu mundo, pelo olhar do colecionador Seligman. Em 1909, data do quadro, ainda faltavam quatro anos para a publicação de "No Caminho de Swann". O escritor era figura menor em seu meio e um completo desconhecido para a literatura. O brasileiro, ao contrário, vivia o auge de sua celebridade, o que justifica a sua presença na tela.

Diante da pintura, no entanto, a imaginação flutua, ziguezagueia e pergunta: quando será que Marcel Proust chegará para a ceia com Santos=Dumont no Pré Catelan?


PARA VER O QUADRO

Apesar de invertido no site, o quadro de Gerveux pode ser visto na internet no seguinte endereço: http://expositions.bnf.fr/proust/grand/171.htm

Na forma invertida como está apresentado, os personagens comparecem assim: o marquês de Dion é o gordinho de bigode, sentado dentro do restaurante à direita; a semi-mundana Liane de Pougy está também sentada, no centro, olhando para nós; e Santos=Dumont aparece, ao fundo, na mesa entre a segunda e a terceira colunas do restaurante. As três figuras em pé, à direita, são o duque Tayllerand-Périgord, Anna Gould (de costas) e madame Gerveux.

Alcino Leite Neto
Alcino Leite Neto é correspondente da Folha em Paris e editor do site Trópico
E-mail: alcino@uol.com.br  <Escreve para a Folha Online às sextas>  

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