A joalheria Cartier faz mais pela memória do aviador do que
o Brasil inteiro
Santos=Dumont é um personagem brasileiro extraordinário.
Está em todos os livros escolares, é invocado na hora dos
arroubos patrióticos como o inventor do avião, mas em
geral sua história e sua memória são coisas que
não interessam a muita gente no Brasil.
Para se ter idéia, as biografias brasileiras de Santos=Dumont
são raríssimas, estão todas esgotadas e foram
escritas há décadas, como "Vida de Santos=Dumont", de
Ofelia e Narbel Fontes (Editora A Noite) e "Alberto Santos=Dumont", de
Oscar Fernandes Brital (Instituto Argentino-Brasileiro).
As melhores já feitas, curiosamente, são de dois
ingleses, sem tradução no país: "Santos=Dumont - A
Study in Obsession", de Peter Wykeham, vice-marechal da Royal Air Force,
e "Man Flies : The Story of Alberto Santos=Dumont, Master of the
Balloon, Conqueror of the Air", de Nancy Winters. Um belo álbum
de imagens foi coordenado por Stéphane Nicolaou: "Santos=Dumont -
Dandy et Génie de l'Aéronautique".
O escritor Márcio Souza, que nunca pretendeu ser
biógrafo, escreveu uma história semi-romanceada de
Santos=Dumont em "O Brasileiro Voador". A diretora Tizuka Yamasaki
queria filmar as suas aventuras, mas desistiu, por falta de
financiamento, parece. O aviador não foi honrado nem sequer com
uma minissérie na televisão.
Estão comemorando alguma coisa aí no Brasil a respeito de
Santos=Dumont? Pois na França, estão, sim senhor. Fazem
cem anos que o aviador recebeu o Prêmio Deutsch, por ter
circundado a Torre Eiffel num dirigível, em tempo recorde. Por
isso, ele ganhou uma exposição sobre sua vida em St.
Cloud, cidade ao lado de Paris, quase um bairro da capital, de onde o
dirigível partiu e para onde voltou e que abrigava o
Aéro-Club de Paris e as oficinas de Santos=Dumont.
Ninguém na França ainda alimenta a ilusão de que o
brasileiro tenha de fato sido o primeiro a voar num aparelho mais pesado
do que o ar (um avião). Foram os irmãos Wright _mas e
daí? O brasileiro permanece ainda assim uma celebridade
histórica no país. É uma dos mitos da Belle
Époque e do início do século franceses.
A famosa relojoaria Cartier tem feito mais pela memória de
Santos=Dumont do que o Brasil inteiro. Não apenas conserva uma
amplíssima coleção de documentos pessoais e de
época a respeito do brasileiro (expostos em St. Cloud), como o
transformou em uma grife elegante, na série de relógios
Santos e também nos perfumes masculinos Santos.
Santos=Dumont foi amigo de Louis Cartier e encomendou a ele um
relógio mais fácil de usar do que o de bolso: daí
teria surgido em 1904 o aparelho de pulso, com pulseira de couro, que o
relojoeiro denominou Santos e é reproduzido e vendido até
hoje, com sucesso. O preço varia, conforme o modelo, entre US$
1.600 e 2.500. Os suíços contestam que Cartier tenha sido
o inventor do relógio de pulso, alegando que o criaram em 1790 _e
mais uma vez: e daí? É mais uma das lendas em torno de
Santos=Dumont, que só fazem a sua vida mais rica e curiosa.
Não foi apenas Cartier que Santos=Dumont encontrou na
França na passagem do século, quando Paris estava no
apogeu de sua vida econômica e cultural. Milionário,
elegantemente vestido, embora de estatura baixa (1m52), ele frequentava
a aristocracia e alta burguesia européias, e era por ela
visitado, inclusive na oficina, passeio que virou programa da elite
depois de seus sucessivos êxitos na aviação.
Foi figura requisitada nos salões e nos jantares finos. Seus
chapéus e ternos viraram moda. E se tornou um mito popular em
Paris, tanto pelos seus feitos, quanto por sua generosidade _ele deu
metade do prêmio Deutsch, uma fortuna na época, para seus
técnicos e a outra metade para a caixa de penhores da capital, a
fim de que as pessoas pudessem resgatar os seus bens.
Wykeman escreve em sua biografia, a respeito dos dias seguintes aos da
premiação: "Sua glória chegou ao zênite: uma
irradiação mundial. (...) Santos se tornou uma coqueluche
de Paris. Era um ídolo, glorificado de todas as maneiras:
cartões-postais, fotografias, souvenirs; todas as lojas de Paris
se inspiraram no brasileiro e no seu dirigível para vender.
Quando ele aparecia em um lugar público, a massa se amontoava em
torno dele".
O biógrafo reproduz um trecho do livro de Ofelia e Narbel
Pontes: "Fotografavam seu hangar, seu ateliê, sua casa, seus
livros, suas invenções e seus automóveis. Os
repórteres inquiriam sobre seus hábitos, seus gostos e
seus ideais. Toda a imprensa se ocupava de sua vida".
Sendo uma presença tão célebre em Paris, é
estranho que não haja de Santos=Dumont nem uma referência
sequer em "À Procura do Tempo Perdido" (A la Recherche du Temps
Perdu), obra-prima de Marcel Proust, que é também um
panorama dessa mesma época e do "grand monde" que o aviador
frequentou.
A "Recherche" é um universo inteiro e atua nos leitores conforme
vibrações variadas. Por isso, precisa ser lida e relida. A
atenção flutuante e derivativa ora se fixa num tema ou
numa passagem, ora em outros. Por algum motivo, este colunista pode ter
deixado passar a referência ao aviador, mas ao que me consta o
único brasileiro que aparece na obra de Proust é um
médico, que vai tratar da avó do narrador. Só
proustianos de carteirinha, como Antonio Candido, Marcelo Coelho e
José Maria Cançado, poderiam no entanto dar a palavra
final ao leitor sobre se Santos=Dumont é ou não citado na
"Recherche".
Proust pode nunca ter cruzado com Santos=Dumont, nem ter sido a ele
apresentado, mas certamente acompanhou as proezas do aviador, que devem
também ter sido objeto de sua leitura nos numerosos artigos que
foram dedicados ao brasileiro pelas revistas famosas da época,
como a "Figaro Illustré", e que estão expostos em St.
Cloud. No jornal "Figaro", do mesmo grupo da revista, Proust escreveu
aliás algumas de suas crônicas sobre os salões
parisienses.
Pode ser loucura tentar imaginar o encontro de Proust e Santos=Dumont,
mas para os brasileiros que admiram o aviador e são ao mesmo
tempo devotos da "Recherche", a ausência do brasileiro na obra
é tão desoladora quanto reconhecer que ele não
teria inventado o "mais pesado que o ar".
A desolação não teria fim, caso não
estivesse acontecendo em Paris uma interessante _e reconfortadora_
exposição, no ótimo Museu Carnavalet.
A exposição se chama "No Tempo de Marcel Proust" e
reúne 160 obras (pinturas, aquarelas, desenhos e gravuras) da
coleção do marchand François-Gérard
Seligmann (1912-1999). Os trabalhos foram doados agora ao museu pela
viúva de Seligman e farão parte do acervo, em sala
especial, com o nome do colecionador.
O marchand adorava a obra de Proust e acabou reunindo tudo o que podia
sobre a Belle Époque francesa, o período proustiano por
excelência. As obras na sua maioria são de cenas da vida
parisiense na época, os restaurantes elegantes, os passeios
chiques, retratos de mulheres e homens da alta burguesia e da nobreza,
mas também de mundanas e mundanos de todo tipo. São
pinturas, portanto, em boa parte feitas sob encomenda, para enfeitar
salas e salões, por artistas de boa fatura, mas do segundo time,
se se pensa que são contemporâneos de Renoir,
Cézanne e Degas.
Pois bem. Uma das maiores telas da exposição é
"Une Soirée au Pré Catelan" (1909), de Henri Alexandre
Gerveux (1852-1929). Representa a inauguração de um
restaurante sofisticado, no Bois de Boulogne, do qual vemos a entrada,
com os carros que chegam e saem, e as grandes portas que dão para
o salão de refeições, abertas, por onde avistamos
os convivas, sentados às mesas.
No centro da composição, na entrada do restaurante,
estão retratados o duque Elie de Talleyrand-Périgord e sua
mulher, a milionária americana Anna Gould, que encontram Mme.
Gerveux, esposa do pintor. Na parte direita do quadro, dentro do
restaurante, surge a "semi-mundana" (descrição do museu)
Liane de Pougy, o marquês de Dion, fundador do Aéro-Club da
França e também do Automóvel Club, e em outra
mesa... "o aeronauta Santos=Dumont".
Proust não compareceu na noite elegante do Pré Catelan do
quadro de Gerveux, mas é um alívio saber que de alguma
forma Santos=Dumont acabou entrando em seu mundo, pelo olhar do
colecionador Seligman. Em 1909, data do quadro, ainda faltavam quatro
anos para a publicação de "No Caminho de Swann". O
escritor era figura menor em seu meio e um completo desconhecido para a
literatura. O brasileiro, ao contrário, vivia o auge de sua
celebridade, o que justifica a sua presença na tela.
Diante da pintura, no entanto, a imaginação flutua,
ziguezagueia e pergunta: quando será que Marcel Proust
chegará para a ceia com Santos=Dumont no Pré Catelan?
Na forma invertida como está apresentado, os personagens
comparecem assim: o marquês de Dion é o gordinho de bigode,
sentado dentro do restaurante à direita; a semi-mundana Liane de
Pougy está também sentada, no centro, olhando para
nós; e Santos=Dumont aparece, ao fundo, na mesa entre a segunda e
a terceira colunas do restaurante. As três figuras em pé,
à direita, são o duque Tayllerand-Périgord, Anna
Gould (de costas) e madame Gerveux.
Alcino Leite Neto
Alcino Leite Neto é correspondente da Folha em Paris e editor do
site Trópico
E-mail: alcino@uol.com.br <Escreve para a Folha Online
às sextas>